Acordar de manhã, sair e voltar para almoçar. Comer a correr e voltar
para o terreno até que anoitecesse, pois esse é o lema. A mãe já veio à nossa
procura, não são horas para andar perdido pela rua e, chegando a casa, toma-se
um banho longo, pois ganhámos uns quantos arranhões e estamos imundos. De
seguida, descansar e pensar naquilo que poderia ter sido feito de forma
diferente e relembrar os momentos que nos marcaram ao longo do dia e as
inúmeras histórias que temos para falar sobre o dia anterior. Descansar e
adormecer ansiosamente para que seja novamente de manhã. Quem nunca teve esta
rotina? Que saudades!
Hoje as ruas ficam desertas durante horas a fio e retirámos o risco a
correr pelos miúdos, persuadindo-os daquilo que deve ou não ser feito. Dando-lhes
as respostas sem que tenham o prazer de conhecer as perguntas. Criando inúmeras
actividades ou tornando-os caseiros, pois andar perdidos pela rua não é um
caminho a percorrer e rapidamente serão considerados vadios ou sem regras, pois
só se metem em alhadas atrás de alhadas.
Quantas foram as vezes em que a vizinha mais idosa dos rés-de-chão
ameaçou chamar a Polícia por não pararmos com o “baliza-a-baliza” e com os “estoiros”
contra a parede, numa inocência de prática pura e dura para ser cada dia
melhor? Quantos foram os baldes de água fria que nos ameaçaram mandar para
pararmos com a bola? Quantas foram as vezes em que tínhamos de nos desenrascar
e ir buscar a bola às silvas (coitadas das urtigas) e ficava aquela linda
comichão, mas rapidamente passava e voltávamos ao jogo reduzido? Quantas foram
as marcas, as quedas na terra batida ou no cimento, o sangue derramado em prol
de uma ambição desmesurada de não perder o “roda bota fora”? Quantas foram as
vezes em que uma jogada perigosa tinha de ser terminada rapidamente, pois um
carro aproximava-se e tínhamos de retirar as pedras de perto dos carros, sendo
esses os pequenos intervalos para beber água?!
Tudo isto e muito mais era criado e recriado diariamente. E, se
estivéssemos sozinhos, haveria sempre algo a praticar, marcando um alvo e
tentando acertar, criando uma mira infalível.
Recordo-me de assistir a vídeos do Youtube com demonstrações dos craques,
novos truques, novas fintas, quantidade de toques, etc… E, nos dias seguintes
enquanto dávamos toques no ar entre todos, tentávamos novos malabarismos até
conseguirmos a perfeição e brilharmos perante os colegas. Esta era a base, mas
hoje não…
As ruas estão cada vez mais desertas e só reparamos nas pedras quando
elas se colocam no nosso caminho. A estrada e os estacionamentos passaram a ser
realmente para os carros e a bola deixou de ter dono no recreio. Hoje as
crianças, fruto do hábito, transformaram a competição ao ar livre em competição
de um qualquer jogo do telemóvel. O Football Manager passou a ser uma seca para
os miúdos, pois como não podem jogar ao livre, tentam pelo menos recriá-lo num
qualquer jogo de Futebol que dê para controlar os jogadores. Sim, eles gostam
de controlar…
E é essa falta de controlo nas suas vidas que leva a que se prendam a redes
sociais e jogos virtuais, onde se colocam em situações verdadeiramente mais
perigosas e passam por limites que os pais nem imaginam e estão muito longe de conseguir
controlar.
Faltam cada vez mais vivências aos miúdos e é, ou deveria ser, parte do
trabalho do Treinador conseguir recriar um espaço dentro do treino onde os
miúdos consigam exercitar sem pressões excessivas de vitória. Se há alguma
lição que retirei e que via os outros retirarem é que ninguém gosta de perder
no “roda bota fora”, mas o caminho a seguir era voltar e tentar. Tentar muito,
percebendo qual o caminho necessário a seguir para que se ultrapassassem os
limites impostos pela lei natural da rua. Nós descobríamos o caminho, não era
necessário o pai ou o treinador na rua a dizer-lhe para fazer isto e aquilo.
Era através disso que conhecíamos melhor o nosso controlo motor e rapidamente
percebíamos melhor as dificuldades.
Faltam vivências, pois hoje
desiste-se com facilidade. O caminho mais fácil é sempre o melhor pelos vistos,
quando não o deveria ser. A criança deveria querer que não fosse fácil, mas que
fosse possível! Vivemos hoje numa era em que a descoberta não é guiada e com
isso sofre-se uma mudança de mentalidade a ser cada vez mais trabalhada. Por
muitos espaços verdes que hajam, muitos espaços que tenham para desenvolver as
suas apetências, eles encontram-se desertos, pois os miúdos não têm interesse
em conhecer e arriscar-se às leis naturais dos grupos.
Somos hoje vítimas da sociedade que fomos criando e muito se fala no regresso
do Futebol de rua. Nós educadores, nós pais, nós professores, deveríamos pensar
numa mudança de mentalidade e criar
hábitos para que os miúdos se divirtam e arrisquem. Para que os arranhões não
sejam algo de mal, mas sim uma aprendizagem. Esse é o caminho…
Que saudades de perder e ganhar no “roda bota fora” e voltar para me
esforçar ainda mais, perceber que os meus amigos me faziam querer aprender mais.
Que saudades de arriscar...Essa é a mensagem que transmito aos meus pequenos
guerreiros...
Ricardo Carvalho
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